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Semana passada, vi uma notícia sobre o caso do casal que discutiu com um fiscal da prefeitura do Rio de Janeiro na qual relatava que uma mulher disse, após o fiscal ter chamado seu marido de cidadão, o seguinte: "Cidadão, não. Engenheiro civil, formado. Melhor do que você".
Bom. A notícia que vi foi sobre como a vida deles ficou após a divulgação desse vídeo: perderam seus empregos, receberam ameaças, enfim… em 10 segundos a vida deles foi bem comprometida - para usar um eufemismo.
Há vários aprendizados e questionamentos interessantes que podemos tirar dessa história.
O primeiro me lembra um comercial muito antigo do banco Itaú que não consegui encontrar na Internet para mostrar a vocês. A propaganda narrava uma história de duas crianças brincando com uma bola que foi escolhida de presente no lugar de (eu acho) uma bicicleta. As crianças foram brincar, quebraram a janela da vizinha e o dono da bola colocou a culpa no amiguinho. Enquanto isso, numa história paralela, um homem vinha andando com uma caixa em direção a uma porta. O locutor conta toda a história das crianças - que relatei anteriormente - quando o homem com a caixa bate na porta e diz algo como “Arthurzinho” e um homem sentado na cadeira diz: “Arthurzinho não, sr. Arthur” e o locutor diz: “se ele não tivesse escolhido a bola, não teria colocado a culpa no Arthurzinho que hoje é presidente da empresa onde ele trabalha.”
(In)felizmente devemos estar muito, mas muito atentos ao que falamos nos meios públicos. Se alguém pegar uma frase isolada, mas que pode ter uma interpretação dúbia e isso vira manchete, você pode ter tua vida destruída. Em resumo: quanto menos se fala, menos se erra - esse é um dos meus mantras de vida.
O segundo aprendizado é sobre a incoerência. As mesmas pessoas que adjetivaram o casal são as que fazem postagens nas redes sociais falando da "falta de amor que esses têm para com o outro não se cuidando como as regras mandam" e comemorando o que esse casal está sofrendo! Ora, que amor é esse? Como eu posso etiquetar uma pessoa de arrogante por causa de 10 segundos de cena numa vida que tem 2,5 BILHÕES de segundos em média? "Suamos" nossa mentalidade? Sim, claro! Mas, somos nossa mentalidade? Além disso, como posso torcer para o mal de alguém e falar de amor ao próximo?
Outra lição está num embate filosófico gigantesco que, para ser melhor compreendido, devemos usar palavras em inglês: SHOULD, MUST / CAN DO, DO. Creio que quase todos hão de concordar que o que fora feito não DEVERIA (SHOULD) ser feito.
SHOULD refere-se a um aspecto moral. O SHOULD é o que permite a liberdade ao homem (filosoficamente falando, há uma abordagem onde o ser humano é livre para amar; logo ele escolhe amar ou não) e o SHOULD implica o CAN DO (porque o CAN admite o CAN’T). Vindo da moral, o SHOULD pode ser justificado, por assim dizer, de uma lei natural superior de ordem, como os gregos propuseram, que deve ser respeitada. No exemplo concreto, dizemos que dentro dessa lei há um "artigo" que diz que não se pode ofender. Mas se a lei da gravidade é uma lei cósmica, no sentido de ser uma lei natural, da natureza, quando Santos Dumont fez o que fez, inventando o avião, ele desrespeitou a lei por não se conformar que o homem era um animal terrestre? OK, não fizemos mutações genéticas para termos asas, mas da mesma forma não nos conformamos com a lei natural que, a priori, dizia somente as aves voam.
Mas o MUST é algo legal e social, ou seja, se o que foi feito no caso em concreto, MUSTN’T, logo DON’T DO. Não há liberdade aqui. You don’t do because it mustn’t.
Esse ponto é de uma discussão muitíssimo interessante (e se você está esperando respostas daqui, já antecipo: a ideia é que você saia com muitas perguntas).
A questão é que a maioria concorda com o SHOULDN’T e há uma divisão entre o MUSTN’T que é: até onde vai a liberdade de expressão? Eu comecei a pensar nisso conversando com um amigo que pensa no MUSTN’T. Seria ainda mais interessante se alguém trouxesse a ideia do SHOULD, ou seja, que acreditasse, moralmente, que o casal deveria ter feito SIM o que fez. É o contraste que enriquece a ideia. Eu não quero estar certo, eu não quero certezas. Eu quero pensar e me desenvolver. Mas sozinho, como me desenvolver? Preciso de alguém que pense diferente de mim e que essa diferença seja motivo para me encontrar com o outro, para conversar, tomar um café. Esse encontro onde a pessoa é mais importante é o que me faz crescer, porque a pessoa não é o que ela pensa. Pessoa é pessoa. O pensamento pode mudar. Se o pensamento muda, ela não deixa de ser pessoa.
Voltando: por que o ponto é muito interessante? Ora, suponhamos uma sociedade onde o pensamento fosse completamente livre e que, inclusive, cada um pudesse falar o que pensa da outra classe social, cor e gênero. Como seria essa sociedade? Hipóteses: teríamos uma sociedade em guerra, porque tudo começa no pensamento, ou simplesmente essas pessoas que fossem preconceituosas seriam vistas como "ridículas", no sentido de: “É sério que você acha que ele é melhor porque é engenheiro? Sério isso? Kkkkk. Galera, aqui, ela pensa que o cara é melhor só porque é engenheiro”... Viu? Ou seja, o preconceito seria visto como um delírio, uma piada de alguém menos evoluído porque estaríamos cientes do que somos.
Levando em consideração a hipótese que a LEI educa a MORAL e, portanto, deve ser usada para tal. Essa MORAL seria o politicamente correto - sem vieses cognitivos aqui; apenas o termo no sentido técnico. Perguntas:
Será que só temos a lei para educar a moral?
Será que a lei é suficiente para educar a moral?
Pode ser que sim! Veja os 10 mandamentos: “Não matarás”. Primeiro te proíbe para você ver o contraste entre o que você fazia (matar) e não faz mais (porque agora há uma lei que proíbe). Depois você verá que você nunca deveria ter matado, ou seja, através do MUSTN’T você enxerga o SHOUNDN’T. Mas a lei é o melhor jeito? Como descobrir o melhor jeito levando em conta a complexidade da sociedade e de cada indivíduo que a forma?
Outro ponto é o paradoxo da tolerância. E isso daqui é a cereja do bolo da complexidade. Isso foi proposto por Karl Popper. O paradoxo diz o seguinte:
“A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles.”.
Na prática devemos ser intolerantes com os intolerantes. Compliquemos mais um pouco. Primeiramente, creio que há muita lógica no paradoxo de Popper. Faz sentido. Em nossa sociedade, quem define o que é o tolerável ou não é o Estado, tanto que há crimes que o são em alguns países e em outros não. Bem... se for acrescentada uma única pergunta ao paradoxo de Popper, isto exponencia a complexidade. A pergunta é: “quem vigia o vigia”? Ou seja, se o Estado é quem limita a tolerância, se eu tolero o que o Estado diz e ele vai pouco a pouco limitando a tolerância, ele passa a ser o intolerante e temos Hitler de volta.
Claro que há muitos outros questionamentos diante da mesma situação. Sócrates em seu auge disse: “sei que nada sei”, mas hoje os informados estão cheios de dúvidas e os desinformados cheios de certeza, como disse o grande Rogério Xavier. Não quero entrar em um relativismo moderno. Eu creio, sim, que existem pontos concretos a serem alcançados. O questionamento é: será que chegamos a tantos pontos concretos assim? Ou podemos usar a antítese diante de algumas tese para criar novas sínteses?
Mayko Petersen
#partiuserrico
14/07/2020