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A justiça é uma ideia milenar que vem antes de Cristo e tinha uma ideia muito relacionada à lei de talião (do latim Lex Talionis (lex = “lei” e talis = “tal, de tal tipo”), isto é, a pessoa que fere outra deve ser penalizada em grau semelhante e a punição deve ser aplicada pela parte lesada. Popularmente está relacionada ao “olho por olho, dente por dente” (inclusive presente da bíblia cristã e na Torá judaica - Êx 21, 23-25) e ensinada popularmente como “pagar na mesma moeda”. Essa ideia vem do Código de Hamurabi mesopotâmico (1772 a.C.), muito antes, portanto, da lei judaica.
A ideia sempre é tratar todos da mesma forma (todos com direitos iguais) e, caso alguém prejudique o outro, deve ser punido na mesma proporção, fazendo valer também a regra de ouro (ética da reciprocidade): “não faça aos outros o que não quer que façam a você" ou “trate os outros como gostaria de ser tratado”. Assim, o outro é responsabilizado pelos atos que faz e sua punição é simples: simplesmente será destino da mesma ação que foi autor. Vejamos o parágrafo 55 do Código de Hamurabi: "Se alguém abrir seus canais para aguar seus grãos, mas for descuidado, e a água inundar o campo do vizinho, então ele deverá pagar ao vizinho os grãos que este perdeu". Qualquer ser humano racional há de concordar que a justiça está sendo feita, afinal é clara a proporção entre dano e penalidade (neste caso, restituição).
Porém, a justiça divina não está somente relacionada à equivalência entre dano (pecado) e penalidade, mas, também, relacionada à misericórdia, ao perdão. Aliás, se pararmos para observar a equivalência entre dano e punição, Deus NÃO é justo. E isso não é heresia: é uma realidade. Ora, pense se você fosse Deus e alguém te trai e pede perdão; até aí, tudo bem, afinal você é um ser mais elevado e aceita que humanos erram algumas vezes na vida. Mas imagine que na outra semana esse alguém te trai da mesma maneira. Poderias dizer: “ok, um é pouco, mas dois é bom”. Só que, no outro dia, esse alguém vacila com você da mesma maneira. Bom, se fosse eu, certamente, faria como os deuses do Olimpo: jogaria um raio e o eliminaria, ou infernizaria seu caminho, ou qualquer outra coisa parecida.
E o que Deus faz? Se Ele fizesse como eu, eu não estaria escrevendo este texto (tenho absoluta certeza disso). A justiça divina, nesse caso, não existe. Não é que vivemos as dificuldades da vida por um castigo divino, como pensavam os humanos na Idade Média. Se fôssemos castigados por nossos erros, vacilos e pecados de maneira justa, nosso único merecimento seria a nossa eliminação da face Terra e recebermos o inferno como morada na eternidade. Temos a ilusória impressão que fazemos coisas boas, que exercemos caridade, que vencemos a tentação e, por conta disso, “merecemos” o céu. Deixa eu te contar um detalhe: O céu é graça, não mérito, pois nada que fazemos pode chegar aos pés do que fez Aquele que vive no céu e veio à Terra.
Uma frase atribuída a Calvino resume um pouco da miséria humana: "Tudo o que você vê de bom em mim é Cristo. Tudo de mal, sou eu mesmo”. Deus, portanto, garante que alguns vivam no céu não por Justiça, mas por Misericórdia. O Salmo 103 (102), versículos 8-10, diz: “O Senhor é compassivo e clemente, paciente e misericordioso / Não está pleiteando sempre, nem guarda rancor perpétuo. / Não nos trata como nossos pecados merecem, nem os paga segundo nossas culpas.”. Então, cadê a Justiça?
No versículo 17 diz: “Mas a misericórdia do Senhor com seus fiéis dura desde sempre para sempre; sua justiça passa de filhos a netos, para os que guardam a aliança e recitam e cumprem seus mandatos”. Ora, lendo assim, de primeira, podemos perguntar: então a justiça se aplica apenas aos que cumprem os mandatos de Deus? E com os outros Deus é injusto? E se Deus aplicasse a justiça a alguém que busca seguir todos os preceitos, mas por sua fraqueza humana acaba pecando, pergunto: a "aplicação da penalidade" para fazer justiça seria na mesma proporção? Não é o que diz o versículo 10, tampouco o versículo 14: “... Ele conhece a nossa condição e se lembra de que somos barro”. É bom, nesse momento, lembrar do Ato Penitencial católico onde se pede perdão por: “pensamentos, palavras, atos e omissões”. Ou seja, pecados não são somente atos, mas também o que pensamos, falamos e o que deixamos de fazer (Mt 5, 28; Mt 5, 22; Tg 4, 17). Logo, se Deus não aplica a “punição” na mesma proporção aos nossos pensamentos, palavras atos e omissões, isso pode ser considerado justiça?
Logo, vemos que a justiça divina não está relacionada ao que nós, muitas vezes, pensamos que é justiça (olho por olho, dente por dente). Inclusive, relembrando o Código Humarabi que citei no início, no seu 196º parágrafo dizia: “Se alguém arranca o olho a um outro, se lhe deverá arrancar o olho”. Podes pensar: "Nossa! Mas que cruel!" Podemos entender que essa é a justiça necessária aos homens em um contexto de complexo convívio social para não haver desproporções. Essa lei foi dada porque, se um pisasse no pé do outro, este ia lá e matava-lhe (Gn 4, 23). Ou seja, comumente havia uma desproporção da punição, pois não havia justiça e, sim, vingança - que é bem diferente. Essa lei foi necessária em um contexto para ser um ponto de partida para um povo que iria herdar um Estado, milênios depois.
Podemos ter entendido o contexto da justiça humana mas a justiça divina ainda não está clara. Existe proporcionalidade, ou não? Vamos nos aprofundar neste aspecto.
Em Mt 5, 43-48 Jesus fala que até os pagãos amam quem lhes ama, mas devemos ser diferentes: devemos amar que nos odeia, porque isso distingue os filhos do Pai. Também, diz em Mt 6, 12, para pedirmos a Deus que perdoe nossas ofensas COMO TAMBÉM nós perdoamos aos que nos ofendem. E, ainda no sermão da Montanha, em Mt 7, 2, Jesus diz que com a mesma medida que usamos para medir, seremos medidos.
Em Mt 18, 23-35, na parábola do credor incompassivo, Jesus conta o caso de um homem que devia 10.000 talentos a seu patrão e foi perdoado de sua dívida. Só para se ter uma ideia do tamanho da dívida, se o considerarmos o salário de um dia em 50 dólares, 10.000 talentos equivalem a 3 BILHÕES de dólares. Esse homem não perdoou uma dívida de um outro (que encontrou logo depois de ter recebido o perdão) de R$10.000,00, aproximadamente, Quando o patrão ficou sabendo, mandou buscar o homem que não teve compaixão e entregou-o aos torturadores. No final, Jesus diz (v. 35): “Assim vos tratará meu Pai do céu, se não perdoais de coração cada um a seu irmão”.
Evidentemente pode-se ver a proporcionalidade em tudo que Jesus disse ("como também", "com a mesma medida", "assim será tratado, se..."). Porém, a proporção divina é ligada à misericórdia. Em suma, a justiça de Deus é a misericórdia do homem. Ou seja, quanto mais misericordioso é um homem, mais misericordioso Deus será com ele. Os egípcios já entendiam isso quando contavam suas histórias sobre o deus Anúbis, que pesava o coração das pessoas depois que morriam em um prato de uma balança, a qual tinha, no outro prato, uma pena. Se o coração fosse mais leve que a pena, a pessoa iria para o paraíso; senão, a pessoa seria devorada por um demônio (Ammit). Vemos que o que era pesado era o coração da pessoa (curiosidade: A balança, como sinônimo de justiça, também era da cultura grega, onde o símbolo é associado à deusa Nêmesis).
Se a justiça de Deus fosse a justiça que costumamos pensar (essa mentalidade medieval, onde o pecado recebe punição em vida) mesmo assim, seria misericórdia! Afinal, em Mt 5, 29s, fala que se nosso olho ou nossa mão nos leva a pecar, devemos arrancá-los para não irmos inteiramente para o inferno. Ora, se Deus tira alguma coisa de nossa vida mediante o pecado que cometemos para que não pequemos mais e, assim, possamos viver a eternidade no céu, Ele prova, mais uma vez, a imensa misericórdia que tem para conosco! Particularmente, porém, eu acredito mais que comemos lama porque nos afastamos de Deus, não porque Ele dá lama para comermos porque pecamos (Lc 15, 11-32).
Em suma, Deus é justo, mas a Justiça de Deus está intimamente relacionada à Misericórdia. Deus não é injusto ou caprichoso, na verdade, nosso olhar sobre Justiça que precisa ser ampliado.
Mayko Petersen
#partiuserrico
22/02/2022